Reportagem

A extensão rural, que foi um dos legados que há poucos meses era reivindicado como a principal bandeira do SUSTENTA, pode perder mais de mil técnicos como resultado de um divórcio já anunciado, deixando dúvidas sobre o rumo que a agricultura, sobretudo familiar, deverá seguir no presente ciclo governativo.
Promovido como a bandeira do desenvolvimento agrícola no país, o programa SUSTENTA está a ser silenciosamente desmantelado pelo novo governo.
Dois meses antes de deixar o poder, Filipe Nyusi exaltava o SUSTENTA como um dos maiores legados da sua governação. No discurso que marcou o lançamento da campanha agrícola 2024-25, apontava com orgulho para os milhares de jovens extensionistas contratados para dinamizar a agricultura familiar e integrar os pequenos produtores em cadeias de valor.
Três meses depois de assumir a Presidência, o novo executivo já começou a desmontar, sem rodeios, o que foi vendido como uma revolução agrícola. Cerca de dois mil técnicos contratados no âmbito do programa estão a ser oficialmente informados da não renovação dos seus contratos.
O Ministério da Agricultura, Ambiente e Pescas (MAAP), que deveria absorvê-los como Agentes de Extensão, parece estar a fechar-lhes as portas. O resultado: centenas de jovens que esperavam estabilidade e carreira no sector público, possivelmente serão atirados para o desemprego.
Fontes do MAAP admitem que, a bandeira que representava o sector agrícola no executivo passado tem um incerto, não havendo consenso sobre a continuidade do projecto.
Governo minimiza
Perante a onda de críticas pela dispensa do batalhão de extensionistas, o MAAP justifica a decisão como algo “normal” e previamente acordado.
Em declaração a Revista Terra, o Secretário-Permanente Acubar Batista, afirmou que os contratos assinados com os jovens técnicos tinham duração limitada a dois anos, e que, findo esse período, a expectativa era que eles se transformassem em produtores agrários.
“O que estava por detrás do assunto dos extensionistas é que nós tínhamos contratos por dois anos, e depois os próprios extensionistas iam se firmar como produtores agrários. E neste momento o que está a acontecer é que os contratos chegam ao fim e tem que haver esta ruptura. Não porque está-se a dispensar como tal”, disse Batista.
Uma das principais narrativas do anterior executivo apontava para a integração destes técnicos no Ministério, como agentes permanentes de extensão rural, contudo, o Secretário Permanente do MAAP salienta que a ideia não era bem assim, mas a transformação daqueles técnicos, em produtores rurais.
“Há vários [que já se transformaram em produtores]. Penso que até poderíamos fazer um programa em que devíamos demonstrar, a nível dos distritos, alguns extensionistas que já se estabeleceram como produtores”, afirmou .
Extensionistas exigemcumprimento do contrato
Com o fim dos contractos (previsto para o próximo mês de Junho) à vista, o clamor dos abrangidos pela decisão é de pedido de justiça e o cumprimento do que, alegadamente, lhes foi prometido.
O caso dos extensionistas do distrito de Marracuene, província de Maputo, por exemplo, ilustra a frustração de jovens mobilizados pelo projecto SUSTENTA, que agora se sentem traídos.
“Nós só iniciamos as actividades em Abril de 2021 porque o contrato dependia do visto do Tribunal Administrativo. Nunca nos deram uma explicação clara sobre as razões do término. E o contrato, segundo a lei, é renovável duas vezes. Isso daria até 2026”, diz Etiene Kagaeuwa, um dos técnicos abrangidos na província de Maputo.
A estrutura do programa previa que os extensionistas fossem avaliados e, mediante desempenho positivo, passassem à categoria de Pequenos Produtores Comerciais Emergentes, com acesso a insumos, tractor, campo mínimo de cinco hectares e condições para empreender. No entanto, as nossas fontes dizem que essas promessas ficaram no papel.
“Nos primeiros anos diziam que seríamos transformados em produtores comerciais. Não aconteceu. Em 2023 renovaram o contrato, mas já sem aquelas bonificações. Começaram a tentar criar outras condições, como sermos enquadrados no aparelho de Estado”, disse outro extencionista ouvido pela Revista Terra.
Para além da falta de “explicações formais” sobre o fim do contrato, há indignação com a ausência de critérios de avaliação:
“Fomos avaliados, então que nos digam quem foram os melhores técnicos. Que benefícios receberam? Que se revejam os contratos e se cumpra o que está lá. Porque o técnico cumpriu. Falta o empregador”, argumentam.
A dispensa destes técnicos, além de gerar desemprego, ameaça directamente a produção local. Com menos assistência, os produtores desanimam, enfrentam perdas e acabam desistindo.
Segundo informações que tivemos acesso, em Marracuene por exemplo, dos 20 técnicos que actuam no distrito, apenas 11, que não fazem parte do programa, vão restar.
Camponeses posicionam-se
A União Nacional dos Camponeses (UNAC), uma das principais organizações que representam os interesses dos agricultores em Moçambique, tem sido uma voz active na defesa dos direitos dos camponeses, especialmente no que tange à assistência técnica.
Para a UNAC, a falta de apoio técnico à produção agrícola é um dos principais factores que podem levar a um retrocesso no sector rural, com implicações directas para a segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável do país.
A UNAC destaca que as técnicas agrícolas são fundamentais para o aumento da produtividade, uma vez que, sem elas, os produtores ficam sem as ferramentas necessárias para enfrentar desafios como as mudanças climáticas e a variabilidade das estações.
As condições climáticas adversas, como secas prolongadas e chuvas intensas, que têm se intensificado nos últimos anos, exigem respostas rápidas e adequadas por parte dos produtores. No entanto, sem a presença de extensionistas qualificados para orientá-los, a adaptação às novas realidades climáticas se torna mais difícil.
“Sem assistência técnica, certamente o país poderá assistir a algum retrocesso, dado que as técnicas são importantes para o incremento da rodutividade. E nota que as mudanças climáticas, por exemplo, são questões que estão a nos abalar nesses últimos tempos. E isso, de alguma forma, demanda por um conhecimento para ver como é que as pessoas se ajustam a esses modelos e que continuam a produzir”, afirmou o Secretário Executivo da União Nacional de Camponeses, Luís Muchanga.
A organização compara a necessidade de um extensionista ao papel de um médico para um paciente.
Quando uma pessoa vai ao hospital, ela precisa de um médico para tratar das suas doenças e orientá-la sobre a melhor forma de recuperar a sua saúde.
Da mesma forma, o campesinato precisa de extensionistas qualificados para orientá-los nas práticas agrícolas, no uso de tecnologias apropriadas, no processo de comercialização de seus produtos e na ocupação dos mercados. Sem esses profissionais, os camponeses ficam à mercê de factores externos, muitas vezes impossibilitados de gerar renda suficiente para sustentar suas famílias e investir em suas produções.
“Tal como um paciente precisa de um médico para ser assistido, o campesinato também precisa de assistência técnica. O extensionista é essencial para orientar os camponeses na produção, na venda de seus produtos e na ocupação dos mercados”, concluiu o representante da UNAC.
Além disso, a UNAC alerta para o risco de um aumento na desistência da produção agrícola, principalmente nas áreas mais afectadas pela falta de apoio técnico.
Sem a garantia de um acompanhamento especializado, muitos camponeses podem optar por abandonar suas actividades agrícolas, o que teria impactos negativos na segurança alimentar e na economia rural como um todo.
A visão académica de Thomas Selemane
Thomas Selemane, economista, com conhecimentos na área de desenvolvimento agrícola, também compartilhou sua visão sobre a importância da assistência técnica para o sucesso da agricultura em Moçambique.
Para ele, a assistência técnica não é apenas uma necessidade, mas um elemento imprescindível para o progresso da agricultura, independentemente do tamanho da propriedade.
“Não pode ser um projecto, não pode ter um horizonte de dois, três anos. Tem que fazer parte da estrutura da administração pública do país, como há nos outros países que nós admiramos, que têm produção alimentar suficiente para a sua população, mas também para exportar”, afirmou Selemane.
A crítica de Selemane se concentra na dependência de projectos externos, que muitas vezes financiam iniciativas de curto prazo.
Na sua análise, a agricultura em Moçambique não pode depender dessa instabilidade, onde, ao fim de um ciclo de financiamento, o apoio técnico seja interrompido, deixando os agricultores sem as orientações necessárias para continuar sua produção. E por isso, defende que a assistência técnica precisa ser contínua e integrada, fazendo parte da política agrícola nacional.
Compartilhar