Política
Depois de 26 anos de vigência, a Lei de Terras vai à revisão. A nova reforma reacende, ainda que de forma subtil, os lobbies de alguns grupos de interesse que querem uma abertura para reduzir o paternalismo do Estado sobre a terra e tornar o Direito de Uso e Aproveitamento de Terra (DUAT) um instrumento que garanta ao titular o poder de transaccionar (oficialmente) ou usá-la como instrumento de garantia em negócios.
O Governo lançou, no passado mês de Junho, o processo de auscultação pública sobre a revisão da Lei de Terras, aprovada há quase 26 anos e celebrada com triunfalismo por vários sectores que viam nela um modelo progressista de defesa e salvaguarda da terra como um bem público.
Oficialmente, o Executivo justifica a reforma com a necessidade de adequar o instrumento às novas dinâmicas, impostas não só pelas mudanças climáticas, que demandam melhor planificação e ordenamento territorial, mas também pela necessidade de se responder de forma adequada aos desafios sociais e económicos.
Em meio a dúvidas sobre o que será a versão final da proposta a ser levada à aprovação pelo Conselho de Ministros, facto que poderá acontecer até ao final do presente ano, há uma garantia que o Governo diz ser para manter.
“A terra é propriedade do Estado e assim continuará a ser”, vincou a Ministra da Terra e Ambiente, Ivete Maibaze, falando recentemente num painel inserido no II Congresso Lusófono de Educação Ambiental, que decorreu em Maputo.
Ainda assim, pelos sinais já emitidos, o Governo pretende flexibilizar a Lei, de modo a que se possa olhar para o investimento internacional na terra de outra forma, evitando a repetição de casos como o ProSavana, um projecto tripartido entre Moçambique-Brasil-Japão, que depois de promessas de revolucionar o sector agrário à moda do Serrado brasileiro, acabou sucumbindo, em parte, pela pressão do movimento cívico, por conta das suspeitas de expropriações de terra.
“Tendo em conta o desenvolvimento económico que o país está a registar nos últimos tempos, era preciso que, neste processo de ocupação territorial vs necessidade de mais terra para desenvolvimento da nossa economia, tivéssemos que actualizar a nossa legislação, para garantir que esses empreendimentos tenham acesso a esse recurso bem precioso para o desenvolvimento do nosso país”, explicou a Ministra da Terra.
A primeira versão (draft zero) do anteprojecto de lei submetido à auscultação pública alarga um pouco mais o leque sobre a relação entre o capital e a terra na futura lei.
“Impõe-se que a terra e os recursos naturais sirvam como fonte de geração de riqueza e de alavanca para a transformação económica e social do país, através da garantia do acesso equitativo, segurança de posse e uso sustentável da terra e outros recursos naturais, tanto dos camponeses moçambicanos como dos investidores nacionais e estrangeiros”, lê-se no documento por nós consultado.
Guerra pela terra
A guerra entre as comunidades, o movimento cívico e as empresas multinacionais pela terra vêm ganhando forma há década e meia. Para além do ‘caso ProSavana’, a comunidade de Cateme, distrito de Moatize, na província de Tete, tornou-se célebre após ser transferida para dar lugar à exploração de carvão pela mineradora brasileira Vale.
Os casos já registados fizeram soar os alarmes sobre as regras de conciliação entre o desenvolvimento económico e o direito adquirido que a Lei concede às comunidades.
Este é um dos aspectos que, segundo a Comissão da Revisão, se pretende resolver com a reforma legal, cujo processo está em marcha.
“Uma das novidades é como começamos a encarar os reassentamentos, no âmbito da implementação dos grandes projectos, para garantir os direitos adquiridos pelas comunidades”, avançou André Calengo, coordenador do processo de revisão do pacote legislativo de terras, no lançamento da auscultação.
E acrescentou: “O princípio que se pretende é de que o reassentamento não deve ser a regra, deve ser evitado. Isto significa que deve ser encontrado um cenário onde os investidores, os projectos, possam partilhar, coabitar com as comunidades, ou seja, integrá-las nas áreas dos projectos”.
O documento lançado para auscultação pública introduz, no número 2 do artigo 37, o elemento “justa indemnização e transparente”, para compensar as comunidades ou famílias afectadas por projectos “para a exploração de recursos naturais ou para implementação de outras actividades económicas”.
A proposta aponta a “justa indemnização” como um pagamento que visa cobrir “não só o valor real e actual dos bens expropriados, à data do pagamento, como também os danos emergentes e os lucros cessantes”.
Por outro lado, propõe que os desalojados devem beneficiar de um “apoio ao desenvolvimento de actividades visando o restabelecimento do nível de renda, padrão de vida igual ou superior ao anterior, incluindo a segurança alimentar e nutricional”.
Consultas comunitárias
O sector empresarial saúda a revisão em curso e entende ser momento de se acabar com as burocracias inerentes à auscultação pública no processo referente ao acesso à terra para fins de investimento.
Jurista e empresário, Jorge Chacate diz que o objectivo de transformar a terra num factor de atracção de investimento encontra nas incongruências da própria lei um grande desafio, a começar pela obrigatoriedade de consulta pública no modelo actualmente em curso, que, no seu entender, mina o princípio de que a terra pertence ao Estado.
“É tanta gente envolvida que chega a trazer morosidade ao processo. Acho que devemos escolher: ou negociamos com o Estado ou com as comunidades”, resumiu.
Mulher no centro do debate
Organizações nacionais que defendem os interesses do género entendem que a futura lei deve olhar para o direito da mulher de outra maneira, saindo do actual “machismo” e marginalização.
“A principal preocupação tem a ver com a protecção dos direitos da mulher à terra, numa altura em que estamos no meio de várias crises, nomeadamente, as mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, como também a questão do conflito político-militar na região norte do país”, referiu Uacitissa Mandamule, pesquisadora do Observatório do Meio Rural (OMR), realçando a ausência de respostas no ante-projecto de revisão da Lei de Terras.
“Não só verificamos que há um vazio no documento, em relação à protecção dos direitos das mulheres, mas também em relação a estas matérias neste draft (zero)”, frisou, durante uma conferência sobre “Mulheres e o Direito de Acesso à Terra em Contextos de Crise”.
De acordo com dados disponíveis, apesar de a mulher ser responsável pela exploração produtiva de uma média de 70% da terra, contribuindo com 15% do PIB no continente, em termos de posse, a percentagem apenas vai até 20%.
Demanda Demográfica
O geógrafo social Roger Hansine chama atenção para a necessidade de a reforma em curso ter em conta, acima de tudo, o aspecto da evolução demográfica do país.
“O principal elemento que relaciona a política de terras e a questão demográfica em Moçambique é a urbanização. Na maior parte dos países, as áreas urbanas geralmente não ultrapassam mais do que 5% do território nacional, entretanto, é nas áreas urbanas onde vive, no caso de Moçambique, cerca de 40% da população, o que mostra que o acesso à terra é um aspecto crítico. Deste modo, esta revisão deve ter em conta este aspecto, porque este país vai continuar a urbanizar-se”, salientou o académico.
“O país tem estado a urbanizar-se muito rápido, por um lado, pela migração do campo para a cidade, mas, por outro, pela taxa de crescimento natural, que leva a uma explosão demográfica nas cidades. Portanto, é esta explosão demográfica em áreas específicas, que são as cidades, em que a lei deverá se focar”, frisou.
Um dos principais enfoques, segundo o académico, deve ser um alinhamento consistente entre a Lei e o Plano de Ordenamento do Território, que devem ter uma orientação do que queremos para o futuro, de forma a corrigir os problemas actuais.
“As projecções são claras. Daqui a mais duas ou três décadas, metade da população moçambicana será toda ela urbana. Dos cerca de 150 distritos que este país tem, nós sabemos qual será a população em cada local, inclusive em cada uma das nossas cidades. Com este conhecimento, devemos, desde já, pensar que tipo de condições a nossa população terá nessa altura. Caberá aos nossos planificadores, gestores, sociedade em geral intervir, de modo a que se possa desenhar os melhores planos possíveis para o uso e aproveitamento da terra e garantir que eles sejam, efectivamente, implementados”,vincou o geógrafo social.
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